Um cientista teve o cuidado de verificar tudo, números incluídos. Veredito sem rodeios: não, o cometa não mudou de cor. E ele prova-o.
O céu ainda estava pálido, aquele azul leitoso que antecede a alvorada, quando o alerta soou no meu telemóvel. Imagens partilhadas em rajada, filtros, setas vermelhas, “vejam, está verde, depois vermelha”. No pequeno observatório da colina, um telescópio frio e um café morno, vi um investigador abrir os seus dossiers como quem tira uma caixa de ferramentas para cima do capot.
Apontava sempre para os mesmos números, incansavelmente. Colunas de g, r, i, as cores calibradas que não enganam. No seu ecrã, o cometa mantinha-se fiel a si próprio, apesar da tempestade online.
A contradição era total.
O rumor face à realidade dos sensores
Nas publicações virais, “3I ATLAS” cintila como um camaleão. Duas imagens, dois tons, e o curto-circuito mental é imediato. A ciência prefere a paciência: não se comparam JPEGs, comparam-se índices de cor.
O investigador reuniu observações calibradas de várias noites. Os números eram planos como um mar sem vento. A cor do cometa mantinha-se.
Um astrofotógrafo mostrou-me os seus ficheiros brutos da noite anterior. A primeira imagem “turquesa” vinha de uma mistura RGB onde o canal verde estava sobre-amplificado. A segunda, mais “vermelho tijolo”, tinha um fundo de céu mais quente e um processamento agressivo do ruído.
O mesmo objeto, duas receitas. Todos já passámos por aquele momento em que uma foto de férias muda de ambiente conforme o ecrã. Lá em cima, o cometa não se mexeu um milímetro.
A diferença entre aparência e cor reside na técnica. As aparências mudam consoante o balanço de brancos, o ganho, o esticamento dos níveis. A cor, no sentido científico, é uma relação entre filtros, um g−r ou r−i calibrado em estrelas de referência.
As séries consultadas mostram um g−r estável dentro da incerteza, da ordem do centésimo de magnitude. Ou seja, não há mudança de material nem emissão exótica. *Os pixéis não são a realidade.*
Como os cientistas testaram o rumor
O método é simples de descrever, delicado de executar bem. Parte-se dos **dados brutos**, em formatos científicos (FITS). Subtrai-se o offset, corrige-se o dark, alisa-se com o flat-field. Identificam-se três ou quatro estrelas do catálogo fotométrico, calibra-se a noite. Depois, mede-se o cometa com a mesma abertura, nos mesmos filtros.
Repete-se a operação em várias noites. Verifica-se a estabilidade do céu e dos zeros fotométricos. Comparam-se g, r, i. Se o cometa “fica mais verde”, g−r desce nitidamente. Se “fica mais vermelho”, g−r sobe. Aqui, a curva não tem inclinação. Apenas um ligeiro tremor, o do erro instrumental.
Os truques são conhecidos. O gradiente de uma cidade ao longe, um véu de altitude, um filtro um pouco sujo. Tudo isto dá tonalidades fantasma aos cometas. Sejamos honestos: ninguém faz isto todos os dias.
Apetece acreditar na surpresa do século, quando normalmente é apenas um esticamento excessivo dos níveis. Na dúvida, melhor regressar aos números frios. Não agradam a ninguém, mas esclarecem.
“As cores não mentem, mas as câmaras sim. O que conta é a coerência dos índices ao longo de várias noites, não um JPEG espetacular.”
- Índices g−r e r−i constantes dentro das incertezas.
- Espectros de baixa resolução sem aparecimento de novas linhas dominantes.
- Fase solar semelhante entre as noites comparadas, portanto, sem efeito de ângulo significativo.
- Sem surto de gás medido em fotometria diferencial.
Para lá do nome, pôr as coisas no seu lugar
Primeiro, um esclarecimento. O rótulo “3I ATLAS” circulou nas redes, mas nenhuma comunicação oficial o seguiu. As únicas cometas oficialmente catalogadas como **interestelar** até hoje são 1I/‘Oumuamua e 2I/Borisov.
ATLAS é o nome de um programa de monitorização do céu. Existem várias cometas “ATLAS”, com anos de diferença, sem ligação entre si. É fácil misturar imagens e construir uma história que não existe.
O rumor da “mudança de cor” explica-se por uma mistura conhecida. Processamento de imagens heterogéneo, ecrãs não calibrados, expectativas exageradas. Cresce porque a cor de um cometa fascina, com aqueles verdes de C2 e poeiras a brilhar ao sol.
Nos dados calibrados, o cometa mantém a sua nuance, um vermelho suave de poeira carbonosa, estável como uma lamparina. O resto é narrativa.
O investigador também analisou os espectros disponíveis. Nada de novo, nenhuma linha a surgir como uma semente na primavera. Apenas a ladainha das moléculas esperadas, com as suas intensidades normais.
A surpresa teria sido um verdadeiro salto, um excesso evidente no verde ou no azul, repetido em vários instrumentos. Aqui, tudo encaixa direitinho. O céu gosta mais da monotonia do que julgamos.
Seria interessante haver um volte-face. Uma erupção na coma, uma fratura a libertar gelos diferentes. Não foi o caso. O que se partiu foi a atenção do público, dividida entre duas imagens com configurações opostas.
Não é muito “cliffhanger”, reconheço. Mas é útil, porque devolve o chão ao nosso entusiasmo.
O nome é confuso, e o mito alimentou-se desse nevoeiro. Um “3I” não confirmado, vários “ATLAS”, e o motor do buzz acelerou. A moral é simples: um objeto raramente muda de natureza entre dois scrolls.
Quando é espetacular, confirma-se a cadeia. Quem tirou a imagem. Com que filtros. Como foi esticada. A verdade segue este caminho íngreme, não um tapete vermelho.
Fica uma questão interessante: porque é que queremos que o céu mude de cor à vista desarmada? Porque o cosmos é lento e os ecrãs são rápidos. Porque o mistério vende mais do que a estabilidade.
Pode-se encontrar outra alegria: a do pormenor exato. Uma curva plana que significa que a física resiste. E que o nosso olhar, ao acalmar, vê melhor.
Este dossier deixa aberta a porta à curiosidade, não ao exagero. A cor de um cometa revela a sua poeira, gás, história térmica. Não muda sem motivo, nem sem se fazer notar claramente na fotometria calibrada. **Nenhuma mudança de cor** aqui, mas uma lição útil: aprender a ler o céu, não apenas a imagem.
| Ponto-chave | Detalhe | Interesse para o leitor |
| Dados calibrados estáveis | Índices g−r, r−i constantes em várias noites | Perceber porque “não ficou verde” |
| Processamentos de imagem enganadores | Balanço de brancos, esticamento, ganhos diferentes | Decifrar fotos virais sem ser enganado |
| Confusão sobre o “3I ATLAS” | Nenhuma designação oficial, ATLAS = nome do programa | Evitar confusões e falsas notícias |
Perguntas frequentes (FAQ):
- A cometa “3I ATLAS” existe mesmo? Até agora, nenhuma designação 3I foi oficializada. ATLAS é um programa que descobre muitos objetos, não é um nome próprio.
- Porque é que algumas imagens mostram tonalidades diferentes? Processamentos variáveis, ecrãs não calibrados, condições do céu distintas. A cor percebida muda, não a cor medida.
- Como se mede a cor “verdadeira” de um cometa? Por fotometria calibrada com filtros padrão (g, r, i), comparando com estrelas de referência e repetindo em várias noites.
- É possível haver uma mudança de cor? Sim, no caso de uma erupção de gás ou poeiras de composição diferente. Ver-se-á então uma variação clara dos índices e do espectro, em vários instrumentos.
- O que analisar antes de partilhar uma imagem viral? A fonte, os filtros usados, a existência de dados calibrados e incertezas. Uma legenda precisa vale mais que um efeito “uau”.
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